Vermelha, bancos caramelo, modelo 348, cupê. Antiga e linda. Indo à garagem do prédio, não há quem não a espie. É ela: uma Ferrari.
Mas, vieram com ela dois problemas para o nosso condomínio: o primeiro, é que provavelmente devido ao seu sistema de lubrificação que objetiva eficácia em altas velocidades, quando parada vaza óleo da relíquia. E ele se espalha pelas vagas vizinhas.
O segundo problema: já fazia um ano que o vizinho a comprou e ainda, aos domingos e feriados ele a levava para passear e acelerava, acelerava mesmo, lá pelas 8 horas da manhã. O motor zunia, roncava, zurrava. É aquele som que você ouve em corridas de Fórmula 1, amplificado porque num ambiente fechado.
Quando o síndico foi pedir providências, ouviu: isso é inveja. E então?
A solução poderá ser conseguida remetendo-se notificação e responsabilizando o condômino pela sujeira, exigindo custeio da limpeza; ele poderia ser multado pelo barulho. Indenizações poderiam ser impostas. Cabem ações judiciais!
Base legal existe com suficiência: no Código Civil, o artigo 1.336 obriga o condômino a, quanto às suas partes “não as utilizar de maneira prejudicial ao sossego, salubridade e segurança dos possuidores”.
Segundo o artigo 1.337, o condômino que não cumpre reiteradamente com os seus deveres perante o condomínio poderá “ser constrangido a pagar multa correspondente até ao quíntuplo do valor atribuído à contribuição para as despesas condominiais, conforme a gravidade das faltas e a reiteração, independentemente das perdas e danos que se apurem”; se for reiterado o comportamento antissocial o condômino “poderá ser constrangido a pagar multa correspondente ao décuplo do valor atribuído à contribuição para as despesas condominiais”.
O síndico deverá tomar as providências (artigo 1.348 -II, IV, V, do Código Civil). E, prevê o artigo 927 que “Aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”. Enfim, fácil encontrar base legal para boa demanda judicial. Haveria outros meios de enfrentar a situação? Seriam caminhos melhores? Óbvio que sim.
De início, é importante circunstanciar a situação: nós nos acostumamos a reclamar de ruídos, a medi-los, a compará-los com os limites postos na legislação, a concatenar o vocábulo “barulho” com “reclamação”, “antissocial”, “polícia”, “síndico”. A razão disso? De um lado o mau uso do imóvel, o desrespeito ao direito do vizinho; de outro lado, a predisposição de agir como fiscais irritados, raivosos. Falta de ouvir, de conversar, acredito.
Porém, vejamos, nem tudo é irritação ou aborrecimento. Moramos em cidades, por esta ou aquela razão é aqui que a nossa vida segue. E, ruídos não são fatalmente ruins, talvez sejam como tantos compostos químicos: na dose certa, fazem bem, na errada, matam.
Mas, com tranquilidade e visão inteligente, a solução sempre vem. No caso do affaire Ferrari: nosso síndico respirou fundo, comentou que a vaga ao lado ia ser trocada com um vizinho fazendeiro e que ele estava preocupado: será que a pick-up sujaria e mancharia o carro vermelho?
Temor: se o óleo vai daqui pra lá, talvez a lama venha de lá pra cá! Cioso de seu direito de não se sujar por culpa de vizinho, nosso automobilista eliminou seus vazamentos ao exigir que o outro não o enlameasse. Entendeu como conviver.
Creio que a lição que o síndico nos deu foi clara: não se nega o dever de respeito aos direitos dos demais; mas o convencimento deve ser eficaz e, preferivelmente, direto, sem precisar chamar um juiz para resolver pequenos assuntos como esse.
No fundo, nosso síndico seguiu boa e clássica lição: “Não faça aos outros o que lhe é odioso. Essa é a lei. O resto são comentários”. Como contestar essa lição milenar, do sábio Hilel, que todos repetimos até hoje? Foi, basicamente, o que o síndico disse ao vizinho, e assim tratou do barulho…
Cidades existem para melhorar a nossa vida; condomínios, para viabilizá-la do melhor modo possível, permitindo o máximo de benefícios em troca do mínimo de desgastes. E uns barulhinhos servem para nos enternecermos e vivermos cada vez mais plenamente. Agora, lá pelas 8 horas da manhã dos domingos ouvimos em nosso prédio somente um zunido, parece uma abelha rouca, a aceleração é feita lá longe.
Problema resolvido!
*Por Jaques Bushatsky é advogado. Presidente da Comissão de Locação e
Compartilhamento de Espaços do Ibradim – Instituto Brasileiro de Direito
Imobiliário. Fundador e diretor da MDDI – Mesa de Debates de Direito
Imobiliário. Autor da obra “Aspectos Principais do Aluguel Comercial” e coautor
da obra “Locação Ponto a Ponto”, publicada pelo IASP Instituto dos Advogados
de São Paulo. Pró-reitor da Universidade Corporativa Secovi-SP. Sócio da
Advocacia Bushatsky.
