O Brasil, que concentra 12% da água doce do planeta, enfrenta um paradoxo entre sua potencial abundância, perdas alarmantes e desigualdade no acesso ao recurso. Segundo relatórios recentes, mais de um terço da água potável tratada se perde antes de chegar às torneiras — volume que seria suficiente para abastecer mais de 50 milhões de pessoas em um ano. Paralelamente, 33 milhões de brasileiros ainda vivem sem acesso regular à água potável.
Na Região Metropolitana de Curitiba, após a pior estiagem da história recente da cidade, entre os anos de 2020 e 2022, os sinais de alerta ressurgem em 2025. A crise hídrica na bacia do Rio Paraná preocupa, pela seca na região Norte do estado e RMC somada à previsão de influência do fenômeno La Niña, com provável redução das chuvas no Sul do Brasil.
O papel estratégico da construção civil
O futuro da gestão hídrica nas cidades passa pela construção civil, mas sem padronização regulatória, a adoção de soluções que demandam investimentos, como os sistemas de reciclagem de águas cinzas, permanecem como exceção, em vez de regra. Um exemplo é o fato de Curitiba, cidade que é referência nacional em certificações de sustentabilidade no setor, ter apenas três empreendimentos residenciais com reúso das águas cinzas, reaproveitadas dos chuveiros e lavatórios nos vasos sanitários. Nos demais, a água potável é desperdiçada pelas descargas.
As edificações projetadas hoje determinarão os padrões de consumo das próximas décadas. Nesse contexto, a construção civil é peça-chave na promoção da eficiência hídrica. Tecnologias de reaproveitamento das chamadas águas cinzas e de captação de água da chuva para irrigação e limpeza dos condomínios já estão disponíveis há anos no Brasil.
Além disso, escolhas técnicas como a especificação de louças e metais inteligentes — torneiras e duchas com redutores de vazão, arejadores que garantem conforto com menor consumo e vasos sanitários de duplo acionamento — ampliam o leque de soluções que podem representar até 60% de economia de água nos empreendimentos verticais. O desafio está em transformar essas inovações em padrão de mercado.
Fragmentação regulatória ainda trava expansão
Apesar de avanços como esses, o reuso de águas cinzas não acompanha a urgência imposta pela crise hídrica. Como destacou o jornal Valor Econômico, a demanda por reuso cresce, mas a regulação é fragmentada: cada município ou estado estabelece suas próprias exigências, sem uma normativa nacional que dê previsibilidade a investidores e construtoras.
Em Curitiba, por exemplo, a legislação municipal obriga apenas a instalação de sistemas de captação de água da chuva em novos empreendimentos, mas não trata do reuso de águas cinzas. Já o Paraná aprovou em 2023 uma regulamentação inédita para o reuso de água, exigindo redes paralelas, sinalização e critérios de qualidade — um avanço, mas ainda restrito ao âmbito estadual. O incentivo do Governo ao reúso de águas cinzas está previsto na Lei Federal 14.546/23, que alterou a Lei do Saneamento. Mas a norma carece de regulamentação.
O Brasil precisa transformar exemplos pioneiros em regra, garantindo que sustentabilidade e eficiência deixem de ser diferenciais de marketing e se tornem obrigação setorial. Afinal, o futuro da gestão hídrica dependerá da nossa capacidade de construir cidades mais inteligentes, resilientes e responsáveis com seus recursos naturais.
*Por Luiz Antoniutti, engenheiro civil graduado pela Universidade Católica de Pelotas (RS),
mestre em Geotecnia pela USP (Universidade de São Paulo), com MBA pela Fundação
Dom Cabral. É fundador da In Situ Geotecnia e foi diretor no Brasil da operação de
geotecnia de terra e offshore da multinacional holandesa Fugro . Foi presidente do Núcleo
do Paraná e Santa Catarina da Associação Brasileira de Engenharia Geotécnica e
Fundações e também professor de Mecânica dos Solos da PUCPR (Pontifícia Universidade
Católica do Paraná). Desde 2015, é diretor-executivo da AGL Incorporadora.