Chegou o momento mais esperado do calendário de um condomínio residencial: a assembleia anual. Neste ano, após investimentos em novas tecnologias, o encontro não ocorre mais no salão de festas ou no hall de entrada, mas sim no ambiente virtual, com cada morador participando do conforto de sua casa. Tudo transcorre bem até a votação daquele tema que, de tempos em tempos, inflama o grupo de mensagens dos condôminos. Os votos são coletados em uma plataforma digital e o resultado, bastante apertado, desperta questionamentos. Será que todos os votos foram registrados corretamente? Houve risco de manipulação? Alguém teria votado mais de uma vez? O que deveria ser um processo ágil e transparente transforma-se em um impasse jurídico, alimentando desconfiança e tensão entre vizinhos.
Esse cenário – nem tão – fictício descrito traduz bem os desafios da gestão condominial contemporânea. Mesmo com a incorporação crescente de ferramentas e procedimentos digitais, persistem vulnerabilidades relevantes quanto à integridade, à transparência e à segurança das deliberações e contratos. É justamente nesse contexto que a tecnologia blockchain e os chamados smart contracts, ou contratos inteligentes, surgem como instrumentos capazes de elevar a administração condominial a um novo patamar de eficiência e confiabilidade.
Mas afinal, o que é a blockchain? Em termos simples, trata-se de uma tecnologia de registro distribuído, em que cada operação é gravada de forma imutável, rastreável e auditável.
Condomínio como agente de confiança digital
No contexto condominial, sabemos que o síndico e a administradora exercem papel de representantes da coletividade, sendo constantemente confrontados com questionamentos sobre a execução de obrigações e a clareza na tomada de decisões.
Com a adoção da blockchain, cada voto, assinatura ou registro contratual pode ser autenticado em um ambiente que funciona como um verdadeiro “cartório digital descentralizado”, dispensando intermediários e fortalecendo a credibilidade das deliberações.
Um voto lançado em blockchain é único, não pode ser duplicado e tampouco alterado após a inserção. Assim, o debate deixa de se concentrar em suspeitas e desloca-se para o mérito das decisões coletivas, fortalecendo a confiança entre os moradores.
Os smart contracts
Eles são programas digitais que executam automaticamente cláusulas previamente definidas, sem necessidade de intervenção humana para sua validação. Em condomínios, isso pode transformar a relação com fornecedores e prestadores de serviço. Um contrato de manutenção de sistemas de segurança, por exemplo, pode ser estruturado em blockchain para que o pagamento seja liberado automaticamente somente após o registro da conclusão do serviço, devidamente validado por um responsável técnico. Em caso de descumprimento de prazos, a aplicação de penalidades é imediata e transparente, reduzindo litígios e evitando discussões interpretativas.
Nas assembleias, os smart contracts também podem ser utilizados para automatizar quóruns de aprovação. Ao ser atingido o número necessário de votos, a decisão é registrada imediatamente, com validade jurídica e sem margem para questionamentos posteriores. Processos antes sujeitos a conferências manuais passam a ser resolvidos com segurança, agilidade e clareza.
Os ganhos práticos de tais ferramentas são evidentes. A transparência é ampliada porque todos os registros podem ser acessados e auditados pelos condôminos, sem necessidade de confiar apenas na palavra do síndico ou da administradora. A segurança jurídica é fortalecida, já que votos e documentos se tornam imutáveis, reduzindo contestações. A eficiência administrativa é aprimorada, pois as obrigações contratuais se executam automaticamente, sem burocracia excessiva. E os custos tendem a diminuir, uma vez que se reduz a dependência de intermediários para validar operações rotineiras.
Entre cautelas e oportunidades: o caminho da inovação
É importante destacar, ainda, que a blockchain cria um ambiente de confiança coletiva. Quando cada morador pode verificar de forma independente o resultado de uma votação ou a execução de um contrato, forma-se um ecossistema mais participativo e menos propenso a disputas internas. A gestão condominial, nesse modelo, torna-se mais horizontal, colaborativa e legítima.
Apesar do potencial transformador, a adoção dessa tecnologia exige cuidados. É essencial optar por plataformas seguras, que atendam aos padrões exigidos pela legislação brasileira. Também é indispensável ajustar a convenção condominial e o regulamento interno para reconhecer formalmente a validade de votações digitais e contratos inteligentes. Sem essa adaptação, não se afasta o risco de questionamentos, inclusive judiciais, sobre a eficácia dos atos praticados.
Outro ponto crítico está na falta de conhecimento. Síndicos, administradoras e condôminos precisam compreender, ainda que de forma básica, como funciona a blockchain e quais são as limitações práticas dos contratos inteligentes. Nesse ponto, uma assessoria jurídica especializada torna-se recomendável para alinhar inovação e conformidade legal, prevenindo nulidades e reduzindo a exposição a litígios.
O que ainda pode soar como algo distante tende a se tornar, em breve, realidade cotidiana, especialmente diante do avanço das plataformas digitais voltadas ao setor imobiliário. Síndicos e administradoras que se antecipam a essa tendência não apenas solucionam problemas recorrentes de governança, mas também posicionam seus condomínios como espaços de transparência, modernidade e confiança.
Adotar soluções em blockchain na gestão condominial pode significar dar um passo além da administração tradicional, rumo a uma nova cultura de governança digital. Mais do que tecnologia, trata-se de construir uma verdadeira comunidade de confiança, em que moradores, gestores e fornecedores compartilham decisões de forma segura, eficiente e transparente.
*Por Leonardo Braga Moura, sócio de Silveiro Advogados, com mais de 20 anos de experiência como advogado, empreendedor e professor, nas áreas de Direito Empresarial, Proteção de Dados, Tecnologia e Inovação. Possui certificação de Data Protection Officer (DPO) na União Europeia (ECPC-B), pelo European Centre on Privacy and Cybersecurity da Maastricht University, Holanda.